ERRATA no livro A Ética e suas Negações

No início do capítulo I. Paternidade e Abstenção, a editora Rocco cometeu um terrível erro: eles simplesmente suprimiram uma linha que prejudica totalmente a compreensão da primeira frase. A frase completa é a seguinte:



Durante toda a história da Filosofia, a Ética tem sido Ética do ser, o imperativo moral básico foi sempre ‘Deve-se viver’, e tudo o resto, uma justificativa desse imperativo.



quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

AINDA ESTOU AQUI: O LIVRO E O FILME (jan-2025)


 AINDA ESTOU AQUI: O LIVRO E O FILME por Julio Cabrera (jan-2025)


Recentemente eu li umas matérias apontando para algumas diferenças entre o livro de Marcelo Rubens Paiva e o filme de Walter Salles “Ainda estou aqui, mas todas as diferenças apontadas me pareceram poco relevantes, e algumas delas banais. Mas me surpreendeu muito que ninguém tenha reparado numa diferença absolutamente crucial entre o livro e o filme, a respeito de como a figura do Rubens Paiva é apresentada. Vou tentar apresentar isto em 3 partes.

ALGUNS TEXTOS DO LIVRO DE MARCELO RUBENS PAIVA: CAMINHOS DE UMA MILITÂNCIA

            Nas páginas 95-96 do livro (utilizo a edição da Alfaguara, Rio de Janeiro, 2015), Marcelo refere-se às reformas, a maioria de claro corte socialista, propostas pelo presidente João Goulart: “Foi lançado o Plano Trienal: reformas institucionais para controlar o déficit público, manter a política desenvolvimentista, instaurar a reforma fiscal para aumentar a arrecadação do Estado e limitar a remessa de lucros para o exterior, reforma bancária para ampliar acesso ao crédito de produtores, nacionalização de setores de energia elétrica, refino de petróleo e químico-farmacêutico, direito de voto para analfabetos e militares de patentes subalternos, desapropriação das áreas rurais inexploradas nas margens das rodovias e ferrovias federais, reforma educacional para combater o analfabetismo com o método Paulo Freire, abolição da cátedra vitalícia”

            Na página 97, ele reproduz o discurso que Rubens Paiva dirigiu à população, nas vésperas do golpe, pelo Rádio Nacional, montando o que foi conhecido como rede da legalidade, e “(...) convidando outras rádios a aderirem ao movimento”. Nesse discurso, Paiva refere-se ao “governo fascista e golpista”, e prossegue: “Julgamos indispensável que todo o povo se mobilize tranquila e ordeiramente em defesa da legalidade, prestigiando a ação reformista do presidente João Goulart, que neste momento está com o seu governo empenhado em atender todas as legítimas reivindicações de nosso povo. Está lançado inteiramente para todo o país o desafio: de um lado, a maioria do povo brasileiro desejando as reformas e desejando que a riqueza se distribua; os outros são os golpistas, que devem ser repelidos e, desta vez, definitivamente, para que o nosso país veja realmente o momento da sua libertação raiar”

            Mais adiante, na página 106, Marcelo escreve: “Não sei o que passava pela cabeça do meu pai. Ele sabia que o cerco apertava. Apesar de não estar envolvido diretamente na luta armada, escondia gente, dava dinheiro, ajudava os mais desesperados, trocava informes, viajava e fazia contato com brasileiros no exílio, lideranças do governo deposto, denunciava tortura, prisões arbitrárias, censura, tinha amigos correspondentes estrangeiros, como muitos da esquerda brasileira (...). No final do capítulo seguinte, Marcelo refere-se aos propósitos do PCB, com os quais seu pai concordava: “Para o Partidão, era preciso fazer a revolução por dentro do sistema, que pelas suas contradições e determinismo histórico ruiria. Não era preciso, então, pegar em armas, mas fazer trabalho político (pp. 127-128).   

            Na página 135, Marcelo conta o deboche de seu pai diante dos sofrimentos do embaixador suíço sequestrado: “Meu pai sabia intimidades desse sequestro? Quando noticiavam pela TV a demora e o sofrimento que o diplomata devia estar passando nas mãos de terroristas, ele debochava: - Tá nada, está se divertindo adoidado, fumando seus charutos”. Na 167, confirma que as cartas que Cecilia e Marilene traziam para Rubens “ocultavam papéis com conteúdo político, remetidos por exilados”. Ou seja, não eram apenas cartas pessoais ou familiares. Mas as páginas mais importantes para o que eu quero mostrar aqui são as 220-221. Ali Marcelo conta como a mãe não queria sequer tocar no assunto do verdadeiro envolvimento do marido com os movimentos de esquerda armada:

  “Para ela, ele era um político cassado que foi preso por ajudar a filha de um amigo, jovem que enviou uma carta de agradecimento do Chile, e, por descuido da organização, foi interceptada. Para ela, a versão de alguém que nem participava da luta armada, ou da subversão, ou do terror, ser torturado daquele jeito era a prova de que a ditadura fazia mal a todos, ao conjunto, ao regime cassado por milicos. Nunca quis discutir se havia indícios de que ele estivesse ligado, de alguma maneira, a organizações de esquerda. Apesar de hospedarmos figuras suspeitas do PCB numa emergência. Apesar das viagens dele ao Chile, ao Uruguai. Apesar de ele rir quando os telejornais diziam que o embaixador suíço sofrera maus-tratos. Apesar da viagem que fizeram a Moscou, dos encontros com estudantes exilados em Paris e na Universidade Patrice Lumumba, a Universidade da Amizade dos Povos. Para minha mãe, meu pai deixara de fazer política em 9 de abril de 1964, quando foi cassado e exilado”. (Todos os sublinhados são meus).

 Por tudo isto que Marcelo conta sobre seu pai em seu belo livro, levando em conta as suas atividades enquanto deputado, a sua decisiva e publicitada participação nas CPI da IBES (Instituto brasileiro de estudos sociais) e da IBAD (Instituto brasileiro de ação democrática), dois institutos de direita anticomunista, depois daquele seu inflamado discurso por Rádio Nacional instando ao povo se insurgir – pacificamente - contra o golpe, depois do fato de ter sido cassado e obrigado a ir para o exílio, e da sua posterior participação ativa como correio de outros militantes contrários ao governo militar, não consigo entender uma frase que o próprio Marcelo coloca na página 259, já no final de seu livro: “O que meu pai fez para apanhar tanto? Nunca saberemos” (p. 259). Será que não estava tudo perfeitamente claro?

Era evidente que os militares, anticomunistas fanáticos, enlouquecidos de poder absoluto e de ódio por tudo o que cheirasse a socialismo, iam visá-lo e esperar a menor oportunidade para caçá-lo. É assim que a própria Eunice viu a situação, como Marcelo o relata (mostro isto na segunda mensagem). O que os militares queriam era, evidentemente, que Rubens lhes entregasse todos os nomes das listas. E podemos prever, pelo que conhecemos do caráter e coragem do Rubens, que ele preferiu morrer de forma terrível antes de entregar ninguém. O que aconteceu com ele é abominável, e não tem nem terá jamais, mesmo que passem 1000 anos, nenhum argumento que o justifique, mas não é algo incompreensível. É perfeitamente compreensível dentro daquele ambiente aterrorizador. Tratava-se de uma guerra quente, com todos seus horrores. 

NO MEIO DE UMA GUERRA QUENTE: A VISÃO DE EUNICE

 Numa guerra, de qualquer temperatura que for, entre duas forças antagônicas sem consenso possível, pelo menos nas ideias fundamentais, constantemente vemos um revezamento de trunfos e derrotas. Quando Rubens consegue se eleger deputado e participar das CPI contra seus inimigos, ele tem uma vitória. Quando ele consegue, no meio do caos, fazer com que colegas seus perseguidos fujam para o exterior, ele obtém outra vitória. Quando ele consegue, durante aproximadamente 6 anos (de 1964 a 1970), comunicar-se por carta com companheiros exilados levando e trazendo informação estratégicas contra o regime militar, ele consegue outra vitória. Mas ele, como bom guerreiro, se arrisca demasiado e, finalmente, tem a sua grande derrota; seus inimigos o prendem e interrogam. Até aqui, estamos ainda dentro do jogo político. Mas tortura e morte, sem qualquer direito de defesa, são o limite da política.

 Os militares permitiram Rubens sair do país para o exílio em data anterior, pouco depois do golpe. Marcelo conta isso com algum detalhe a partir da página 98 do livro. Mesmo depois da sua militância de esquerda como deputado, mesmo depois do discurso inflamado contra o golpe por Rádio Nacional, os militares não se opuseram à sua saída do país. Ele voltou imprudentemente, ainda em 1964, fugindo do avião (p. 104). Aquilo foi de uma temeridade heroica ou estúpida, ou ambas as coisas. E pior ainda quando essa temeridade punha em risco a vida de terceiros, de pessoas queridas. Esta parece ser, em parte, a atitude da própria Eunice, tal como Marcelo a apresenta no livro:

 Estava na cara que deveríamos ter partido para o exílio. Todos se foram. Era a lógica de alguém visado. Partidos de esquerda se esfacelaram no começo do golpe. Até partidos de esquerda contra a luta armada estavam sendo esmagados pela ditadura depois do AI-5. A pergunta: por que ele atrasou tanto a nossa partida? Arrogância? Confiança? Dever ideológico? (p. 106). “O sensato seria nos mudarmos para Londres ou Paris. (...) Meu pai perdeu o timing. Onipotência e teimosia que minha mãe nunca perdoou. Queria lutar quixotescamente numa guerra já perdida. Arriscou a família. Tinha cinco crianças. E tenho certeza de que, destroçado pela tortura, deve ter pensado nisso. (...) Inimaginável seu sofrimento. Talvez a dor da tortura não chegasse aos pés da descoberta de que tomou decisões erradas, arriscou a vida da mulher e dos filhos, crianças ainda. Deve ter sido a sua derradeira tortura” (pp. 107-108).

 E mais adiante: “Minha mãe nunca perdoou a incrível falha de segurança, o amadorismo, a imprudência: ir do Chile com uma carta escondida, no avião mais queimado do país, com o telefone do marido escrito no envelope; prepotência e descuido das organizações de esquerda, que colocaram duas famílias com crianças no fogo cruzado, os Viveiros de Castro e os Paiva” (p.173). “Por anos, ela não o perdoou por colocar a família em risco, numa luta desigual, desorganizada, praticamente perdida. Para muitos, meu pai foi um herói que não fugiu da luta. Para ela, deveria, sim, ter seguido para o exílio, quando soube que a família poderia passar pelo que passou. Mas lutou por ele a vida toda. Lutou para descobrir a verdade, para denunciar a tortura, os torturadores” (p. 259)[1].

 Também de acordo com o livro, Eunice deu-se por conta, tardiamente e com o passar do tempo, que o que tinha acontecido com a família Paiva era parte de uma luta ideológica de muito maior alcance. Marcelo escreve: “Eu tinha, sim, ódio dos militares. Do poder. No entanto, assistir à atuação dela [da mãe Eunice] me ensinou a não alimentar revanchismos. Ao invés de se fazer de vítima, ela falava de um contexto maior, entendia a conjuntura do continente, sabia ser parte de uma luta ideológica. (...) Nunca se deixou cair no pieguismo, não perdeu o controle diante das câmeras, nem vestiu uma camiseta com o rosto do marido desaparecido. Não culpou esse ou aquele, mas o todo. Não temeu pela vida. Lutou com palavras” (pp. 192-193).

 De acordo ao relato singelo do livro, considerar Rubens Paiva como uma vítima inocente seria uma ofensa à sua memória. Ele foi um bravo guerreiro da esquerda, que assumiu todos os riscos, que viveu e morreu corajosamente, que lutou e perdeu a batalha decisiva em sua vida particular, mas que ganhou a guerra, hoje lembrado e honrado, enquanto seus torturadores, aparentemente vitoriosos na época, hoje estão reduzidos ao nada. Rubens triunfou, seus sofrimentos não foram em vão, mesmo que a nossa sociedade atual esteja ainda muito longe da sonhada por ele.


      UM FILME DUVIDOSO

             O filme de Walter Salles, em minha opinião, se afasta bastante da honestidade e profundeza do livro de Marcelo. Trata-se, sem dúvida, de um filme importante na história do cinema brasileiro, mas está longe de ser obra-prima (para mim, a obra-prima de Walter Salles continua sendo “Central do Brasil”). Em primeiro lugar, no terreno estritamente artístico, o filme apresenta muitos defeitos de direção; aponto alguns. Um muito grosseiro refere-se à compreensão narrativa do filme quando passam 25 anos após os fatos narrados na primeira parte: num filme feito explicitamente for export, para festivais internacionais, ninguém vai entender a aparição desse cadeirante, escritor famoso, assinando o livro “Feliz ano velho”, algo totalmente compreensível para brasileiros, mas muito mal narrado para o entendimento de público de fora.

 

 Segundo: um dos momentos cruciais do livro, de muita emoção e muita significação humana e política, é o momento em que o soldado que conduz Eunice para as terríveis sessões de reconhecimento de fotos, nos porões obscuros da tortura, lhe diz a ela que não concorda com nada disso, que apenas obedece a ordens. Isso é narrado de maneira comovente nas páginas 141-142 do livro, e o reproduzo aqui pelo seu grande valor literário e humano: 

 

O mesmo soldado de antes, um dia, de surpresa, deixou um chocolate na beira da cela. (...) Num outro dia, também de surpresa, ela acordou e lá estava ele, o soldado, encostado na cela. Parecia atordoado. Infeliz. Como se quisesse dizer algo. Como se fosse explodir. Assustado. Olhava indignado para a minha mãe. Então ele disse as únicas palavras que faziam algum sentido: Olha, queria que a senhora soubesse que eu não concordo. Só estou cumprindo ordens. Eu não concordo com isso. Isso vai acabar. Um dia, vai acabar. O que estão fazendo aqui não está certo. E quando acabar, e nos reencontrarmos um dia, em outras condições, espero que a senhora conte a todos que eu não concordava, que só cumpria ordens e que torcia para isso acabar logo.   

 

O desabafo trouxe um alívio instantâneo. Como se um raio de sol atingisse seu rosto, por uma fresta milagrosa da masmorra. O soldado fez um bem incrível a ela. Mostrou que o mundo não estava do avesso para sempre. Que o que ela vivia, sim, não fazia o menor sentido. Que existiam pessoas de dentro que não concordavam. Que nem toda a estrutura estava a serviço da loucura. Tinha humanidade naquele terror. Havia aliados da sanidade. E ela nunca mais se esqueceu dessa testemunha anônima do caos. Repetia para nós sempre a mesma história, em detalhes, com as mesmas palavras. Foi das poucas coisas que fez questão que sua memória registrasse naquele fim de janeiro de 1971. Do resto, se esqueceu de muito, ou não quis falar, ou não quis relembrar”

 

Este fato, fundamental para o sentido do relato, Salles passa rápido e inexpressivamente no filme, um momento crucial que as imagens poderiam ter expressado de maneira muito mais viva que na escrita. Tal vez alguém possa alegar que isto foi proposital; em geral, o estilo do filme é seco e distanciado, muito contido (como a própria interpretação da Fernanda Torres), o que se deixa ver também no fato de nunca se mostrar a tortura de forma direta. Mas deixa o sabor de algo que foi desaproveitado.

 

A mesma coisa se pode dizer da doença de Alzheimer de Eunice, fundamental no livro, e rica em metáforas: pois é paradoxal – um terrível paradoxo - que a mulher que lutou a vida toda pela memória, a perca. A narração não é clara a respeito da doença dela, o público não vai entender o que aconteceu, apenas sugerido por uma cena de esquecimento comum. Somente a atuação muda da Fernanda Montenegro, no final do filme, mostra todo o drama da doença. Mais um elemento desaproveitado. O filme não me pareceu bem dirigido, e não mereceria, em minha opinião, qualquer indicação de melhor direção em festivais internacionais. Muito menos ainda de roteiro adaptado, prêmio que já lhe foi dado em Veneza (será que os italianos conheciam o livro de Paiva o suficiente para poder julgar?).

 

 Mas indo ao assunto mesmo, ao conteúdo político do filme, eu quero explicar por que digo que o livro do Marcelo me parece mais honesto que o filme, especificamente a respeito da figura de Rubens Paiva tal como apresentada.   Há uma cena crucial do filme, já bem na segunda metade, onde Eunice fala com um amigo do Rubens e ela lhe pergunta quais eram as verdadeiras atividades do marido. Ele responde que Rubens era uma espécie de correio entre exiliados opostos ao regime militar, transmitindo informações, e que ele lhe ocultou isso para protegê-la. Deixando de lado que essa tentativa de “proteção” era absurda durante os horrores da ditadura militar (pois mesmo que Eunice dissesse que “não sabia de nada” de igual forma os militares podiam torturá-la e matá-la), as frases cruciais que o amigo pronúncia nessa cena são (mais ou menos, cito de cor) as seguintes: “Não havia como não fazer nada; todos os que podiam ajudar a pessoas perseguidas ajudavam, de uma forma ou outra”.

 

Eu busquei cuidadosamente, linha por linha, e parece-me, salvo engano, que esta frase não aparece no livro. Ela foi acrescentada no roteiro. Depois de ter apresentado Rubens, em cenas anteriores, como um sujeito muito bem-humorado e excelente pai e marido, com uma relação magnífica com a mulher e os filhos, brincando na casa e na praia (inclusive, na sua primeira aparição, é mostrado discutindo com um colega um projeto de engenharia, sem qualquer elemento político) nessa cena da Eunice com o amigo se apresenta Rubens apenas como um homem bom e solidário, justamente comovido pela situação do país, e fazendo o que qualquer outro teria feito em seu lugar para ajudar a pessoas necessitadas. Ou seja, apaga-se a figura do militante socialista ativo (tão expressivamente mostrada no livro, como tentei documentar) para transformá-lo num homem como qualquer outro, que se comove com a situação e tenta ajudar alguns conhecidos, algo muito menos forte e expressivo que o mostrado no livro.

 

 Pelo que Marcelo conta, seu pai estava profundamente engajado numa guerra fria contra a ditadura. Era um ativo militante, embora não participasse de qualquer luta armada. Mas estava longe de ser apenas um cidadão comum que fez o que qualquer pessoa sensível teria feito, com o sugere a frase: “Não havia como não fazer nada”. A própria Eunice, tal como apresentada por Marcelo, acreditava o contrário: claro que se podia fazer outra coisa; havia que ter partido logo para o exílio com toda a família e parado de brincar com fogo.

 

O filme atenua, pois, a guerra quente, apresentando Rubens como um sujeito bonachão que caiu em desgraça por realizar apenas atos caridosos com alguns conhecidos, como qualquer outra pessoa teria feito. O livro, pelo contrário, mostra um guerreiro com convicções fortes que lutou e morreu heroicamente. Eunice não queria esse herói, queria seu marido. Mas ele, como tantos outros idealistas, estava querendo dar para seus filhos uma sociedade melhor e mais justa; e isso era, para ele, mais importante que festejar seus aniversários no exílio, enquanto muitos de seus colegas morriam no Brasil.

 

Pessoalmente, não creio que o filme ganhe o Oscar de melhor filme estrangeiro, embora nunca desejei tanto me equivocar. Tampouco penso que isso seja algo a ser tão almejado assim. O Oscar tornou-se uma verdadeira obsessão. Na verdade, se fosse guiada por critérios puramente artísticos, a Academia de Hollywood deveria ver no filme suficientes méritos como para homenagear o último dos 3 países com os cinemas mais expressivos de América Latina: Argentina já tem dois Oscar e México um. Estaria mais que na hora de que um país que já deu Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, e obras primas como “O pagador de promessas”, obtenha essa recompensa. Para os supersticiosos, lembro que o primeiro filme argentino a receber o Oscar – “A história oficial”, de Luis Puenzo, de 1986 – tratava sobre os horrores da ditadura militar argentina. 



[1] Tudo isto me coloca de novo a possível incompatibilidade entre a militância política radical e a formação de uma família; são duas coisas demasiado importantes como para poder fazer ambas simultaneamente de maneira correta. Curioso que, tanto no livro como, sobretudo, no filme, Rubens aparece como “um bom pai” – isso que tanto emocionou Sean Penn quando parabenizou recentemente Selton Melo, dizendo que teria querido ser um pai assim como aparece no filme. Mas Rubens não foi um bom pai. “Ser um bom pai” não é apenas brincar com os filhos na praia, mas protegê-los, não os expor a perigos mortais, conhecendo perfeitamente os riscos imensos que se corriam naquele momento terrível do país.  

SCHOPENHAUER, O MAU GOSTO E "EMÍLIA PÉREZ" (jan-2025)

SCHOPENHAUER, O MAU GOSTO E "EMÍLIA PÉREZ" - por Julio Cabrera

Schopenhauer disse que um dos tantos motivos para ser pessimista é o predomínio do mal gosto sobre a grande arte. (Pode-se consultar o texto “Sobre o juízo, a crítica, a ovação e a fama” nos “Parerga e Paralipomena”, entre outros lugares).

A sua metafísica da Vontade de Vida oferece uma explicação para isto: a massa do público (incluídas as massas intelectuais) prefere aquela arte que satisfaz os anseios imediatos da vontade, sendo arredio, pelo contrário, à grande arte, que tenta manifestar o predomínio da representação pura sobre a impetuosa vontade de vida.

É por isso que - aplicando esta ideia ao cinema, que Schopenhauer não conheceu - filmes com altas doses de sexo, crueldade e violência têm muitas mais chances de cair no gosto do público (e até dos "críticos") do que uma reflexão em imagens sobre a condição humana, o sentido da vida ou a morte.

O engendro chamado “Emília Pérez”, do francês Jacques Audiard, seria, para Schopenhauer, um belo exemplar desse mau gosto imediatista e oportunista. É, sem lugar a dúvidas, o pior filme que vi nos últimos 30 anos. Se impõe sobre qualquer outro em vulgaridade, artificialidade, infidelidade e impostura ética e estética. Um filme surpreendentemente ganhador de prêmios importantes e grande favorito para futuras premiações, o que mostra – mais uma vez – que pelo menos em nossas sociedades modernas é bom aquilo que uma comunidade poderosa declara como sendo bom.

Atualmente uma obra não é reconhecida por ser boa, mas se torna boa a partir do reconhecimento. Assim como Midas, hoje em dia Netflix e Hollywood transformam em ouro tudo o que tocam.

Deixo de lado a crítica, já feita nas redes, do tema do folclorismo mexicano em que o filme cairia, por falta de cultura do diretor. Isto não é decisivo. O filme “À sombra do vulcão” (1984), de John Huston, baseado no livro de Malcolm Lowry, também apresenta um México estereotipado, mas é um filme notável. E este tema do folclorismo é muito relativo e controverso.

Nas histórias do cinema brasileiro, muitos historiadores apontam, por exemplo, para o exotismo de “Caiçara”, feito pela Veracruz em 1950, mas não criticam o exotismo de “Barravento”, de Glauber Rocha. (Pode-se consultar: Laurent Desbois, A odisseia do cinema brasileiro. Companhia das Letras, São Paulo, 2016, pág. 68). A acusação de folclorismo supõe uma “autenticidade” - talvez mítica - difícil de atingir.

De certa forma, os franceses, com “Emília Pérez”, fizeram com o México a mesma apropriação cultural canhestra que já fizeram com o Brasil em “Orfeu de carnaval” em 1960, um filme falado em português, com atores e música brasileiros, mas que ganhou o Oscar para a França pela nacionalidade de seu diretor, Marcel Camus.

Agora temos um filme falado em espanhol, referido ao México, com atores de origem hispânica (apenas uma mexicana), mas que é um filme francês pela nacionalidade de seu diretor. Uma espécie de pirataria artística de duvidosa legitimidade, mas cujo resultado pode ser uma absoluta obra-prima como “Orfeu de carnaval” ou um lixo como “Emília Pérez”.

Tudo isto, porém, poderia ser considerado anedótico, de maneira que vamos ao filme mesmo. A alma de um filme é seu roteiro. O argumento base do roteiro de “Emília Pérez” é o seguinte:

Um muito viril chefe de quadrinha de narcotráfico chamado Manitas tem o forte desejo de ser mulher, mesmo casado com uma bela esposa e pai carinhoso de dois filhos pequenos. Este nobre desejo de “se encontrar” para além do que a natureza lhe deu é minimizado, em parte, porque a transformação poderia ser vista também como uma manobra de um criminoso muito visado, para não ser encontrado e responder pelos seus crimes. Com ajuda de uma advogada quarentona em crise, consegue o auxílio de um médico que o opera e muda de sexo.

Esta manobra é mostrada com uma crueldade moral horrorosa, porque ambos fazem acreditar a mulher e os filhos que ele morreu, com toda a dor que isso provoca, além de legitimar o abandono da família para viver ufanamente “sua nova vida”, sem importar-se por destruir a vida dos que o amam. A advogada, que no início do filme aparece justamente escandalizada – forçada por acordos escusos de seu chefe – por ter que disfarçar de suicídio o assassinato de uma mulher por seu marido, logo depois se presta para o engano monstruoso de Manitas sem o menor escrúpulo.

Não se trata, claro, de fazer uma crítica moral do filme, o que estaria fora de lugar, mas de apontar o caráter intragável da história em si: alguém que diz amar sua família, sobretudo seus filhos, muda de sexo como muda de roupa pensando que, com isso, ganhará uma nova vida, e a maneira como o consegue é rebuscada e incoerente. Já o velho Aristóteles dizia que, em Arte, tem que haver alguma verossimilhança mesmo dentro do inverossímil.

Mas os absurdos éticos e estéticos do roteiro não param por aí. Embora agora seja mulher, Emília continua desejando mulheres. Além do mais, depois de um tempo ela começa a sentir terríveis saudades de seus filhos, aos quais ainda ama como seu pai biológico. Para matar a saudade, Emília convence a sua ex esposa Jessy a trazer seus filhos para a sua casa, se fazendo passar por uma tia, irmã do “falecido” que na verdade é ela mesma. Imagine um homem que mudou de sexo convivendo cinicamente com a sua ex-mulher que o crê morto, sem saber que aquela gigantesca tia é, na verdade, seu marido. (Jerry Lewis, em seus belos tempos, poderia ter feito este papel com grande sucesso).

O folhetim ainda tem mais desdobramentos “dramáticos”. A esposa aceita este retorno ao México (apesar de achar essa tia muito esquisita) porque mantém aí um amante, Gustavo, com quem ela queria mesmo se reencontrar. Mas a seguir os absurdos do roteiro se encaminham num viés pretensamente “social” e “político”, pois o nosso transformado chefe do narcotráfico, arrependido de seu passado de crime e culpado de múltiplos desaparecimentos, agora, em seu novo corpo feminino, cria uma Ong para pesquisar desaparecimentos e compensar suas vitimas! Sem perder a chance, claro, de dormir com Epifania, uma de suas clientes (e a única atriz mexicana do elenco).

Aqui o círculo se fecha moralisticamente: o criminoso arrependido tenta – com a cumplicidade da sua sempre fiel advogada corrupta – compensar, de alguma forma, os danos que fez quando ainda era homem. Durante um tempo, ela é feliz com seus filhos (apesar de provocar surpresa pelo carinho desmedido que mostra pelos seus “sobrinhos”), mas fica arrasada quando Jessy declara que vai se casar com seu amante Gustavo e levar seus filhos com ela, com o qual Emília entra em pânico e ira incontível. Já nessa altura do filme, resulta muito difícil empatizar com qualquer uma das protagonistas, dada a falsidade de suas opções e comportamentos, e a pesar do meritório esforço do trio de atrizes.

A última parte do filme, que começou intimista e continuou “social”, agora se torna uma espécie de thriller tenebroso e nauseante, no qual a transformada Emília, que aparentemente tinha abandonado seu passado de gângster, manda seus capangas darem uma surra em Gustavo para ele ir embora da cidade; mas Jessy não dá por menos e revida sequestrando Emília e arrancando-lhe alguns dedos. A esta altura, as minhas gargalhadas já começavam a incomodar aos meus vizinhos mais próximos do prédio.

Se o leitor já se perdeu nesta minha falida tentativa de resumir este folhetinesco turbilhão cheio de sem sentidos, assistir ao filme não lhe esclarecerá as ideias, porque o desenvolvimento em imagens é ainda mais confuso que qualquer tentativa de sinopse. Há um tiroteio final entre as gangues das duas mulheres, onde, finalmente, Emília conta para sua ex-mulher que ela é, na verdade, seu marido. Impossível não evocar aqui "Glen ou Glenda", o clássico de Ed Wood, considerado, até agora, o pior diretor de todos os tempos.

Como esta intragável história está narrada pelo diretor Audiard? Aqui chegamos ao paroxismo: está narrada em forma de filme musical! O ridículo chega ao seu máximo quando as três pobres atrizes são obrigadas a cantar ou sussurrar as suas falas de forma musical e dançar (ou mexer o corpo de maneiras grotescas, sem qualquer preparo artístico na maioria dos “números”). Não se entende como este estilo narrativo combina com o conteúdo, provocando surpresa quando não irritação, quando o espectador, mergulhado nos meandros da “história”, vê de repente que as atrizes e atores continuam suas falas cantando.

Poderemos odiar musicais, mas eles têm uma lógica, uma estrutura que mudou bastante com o tempo, desde “Cantando na chuva” até “Lá, lá, Land”, mas que aqui aparece como um aditamento postiço e arbitrário, além de maximizar os absurdos do roteiro.

O filme é, afinal, uma grande impostura – ética e estética – às custas de todos os temas que ousou abordar: narcotráfico, mudança de sexo, consciência social, conflito familiar, violência. "Emília Pérez" é uma ofensa ao México, aos transexuais - que aparecem afundados em crime e reivindicações hipócritas - e ao cinema, por apresentar uma mistura rarefeita de drama intimista, musical, crítica social e thriller, sem ser nenhuma dessas coisas.

Falemos agora do filme no contexto do Oscar. Historicamente, os brasileiros têm bastantes motivos para estarem irritados com o cinema francês. Além do fiasco de “Orfeu de carnaval”, poucos anos depois, em 1963, um insignificante filmezinho francês chamado “Os domingos da vila d’Avray”, de Serge Bourguignon, foi preferido pela Academia à uma das grandes obras-primas do cinema brasileiro, “O pagador de promessas”, de Anselmo Duarte, que já tinha ganhado a Palma de Ouro de Cannes nesse mesmo ano.

Os norte-americanos já deram aos franceses nada menos que 13 Oscar, dos quais os únicos realmente notáveis foram apenas 7, e desses, 4 foram feitos por diretores não franceses: “Meu tio”, de Jacques Tati (1958), “Orfeu de carnaval” de Marcel Camus (1960), “Z”, do grego Costa-Gavras (1970), “O discreto charme da burguesia” do espanhol Luis Buñuel (1973), “A noite americana”, de François Truffaut (1974), “As invasões bárbaras” do canadense Denys Arcand (2004) e “Amour”, do austríaco Michael Haneke (2013). O restante são apenas bons filmes, ou inclusive filmezinhos insignificantes, como os que ganharam Oscar em nada menos que 3 anos consecutivos! (77, 78 e 79).

Não pensem que Jacques Tati, Robert Bresson, Jean-Luc Godard, Alain Resnais, Louis Malle, Eric Rohmer e Claude Chabrol - nenhum dos quais ganhou nunca um Oscar competitivo - representam o cinema francês. Eles foram exceções dentro de uma mediocridade que tem sido típica do cinema francês ao longo de décadas, o que se mostrou mais claramente após o desaparecimento desses grandes mestres do passado. (Mesmo os mais cultuados diretores dos anos 40 e 50, como René Clair e Jean Renoir, fizeram obras irregulares e de qualidade questionável).

O cinema de Jacques Audiard é bem representativo dessa mediania do cinema francês pós-nouvelle vague, com obras apenas corretas como “De tanto bater meu coração parou” (2005), O profeta” (2009), “Ferrugem e osso” (2012) e “Dheepan: o refúgio” (2015). Entretanto, todos esses filmes anteriores de Audiard, mesmo sendo apenas corretos e sem qualquer genialidade, eram filmes dignos e sérios. Com eles, este diretor ganhou, predominantemente, prêmios franceses (incluindo uma Palma de Ouro por “Dheepan”), com exceção de dois Bafta e um prêmio em Veneza.

Mas com “Emília Pérez” ele se superou: da modéstia passou para o disparate. Este é o segundo filme de Audiard que ganhou a atenção dos norte-americanos. Em 2010, “O profeta” foi indicado, mas perdeu para o filme argentino “El secreto de sus ojos”. “Emília Pérez” foi uma das minhas piores experiências cinematográficas das últimas décadas, especialmente por ter de assistir duas vezes, tentando descobrir o enigma de seu incrível sucesso.

Eu espero ingenuamente que a Academia tenha um de seus raros momentos de lucidez e não premie este mamarracho ético e estético, mesmo que não dê o Oscar para o filme brasileiro, que tampouco merece (segundo já falei em nota anterior), mas que, sem qualquer dúvida, é um filme sério, como o são também “Vermiglio”, “A semente do fruto sagrado” e “Tudo o que imaginamos como luz”.

Mas se em março teremos “Emília Pérez” como melhor filme internacional, e talvez até como melhor filme do ano, depois de ser premiado em outros prestigiosos festivais, isso provará que a estupidez estética denunciada por Schopenhauer não ficou soterrada na primeira metade do século XIX.

 
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