Schopenhauer disse que um dos tantos motivos para ser pessimista é o predomínio do mal gosto sobre a grande arte. (Pode-se consultar o texto “Sobre o juízo, a crítica, a ovação e a fama” nos “Parerga e Paralipomena”, entre outros lugares).
A sua metafísica da Vontade de Vida oferece uma explicação para isto: a massa do público (incluídas as massas intelectuais) prefere aquela arte que satisfaz os anseios imediatos da vontade, sendo arredio, pelo contrário, à grande arte, que tenta manifestar o predomínio da representação pura sobre a impetuosa vontade de vida.
É por isso que - aplicando esta ideia ao cinema, que Schopenhauer não conheceu - filmes com altas doses de sexo, crueldade e violência têm muitas mais chances de cair no gosto do público (e até dos "críticos") do que uma reflexão em imagens sobre a condição humana, o sentido da vida ou a morte.
O engendro chamado “Emília Pérez”, do francês Jacques Audiard, seria, para Schopenhauer, um belo exemplar desse mau gosto imediatista e oportunista. É, sem lugar a dúvidas, o pior filme que vi nos últimos 30 anos. Se impõe sobre qualquer outro em vulgaridade, artificialidade, infidelidade e impostura ética e estética. Um filme surpreendentemente ganhador de prêmios importantes e grande favorito para futuras premiações, o que mostra – mais uma vez – que pelo menos em nossas sociedades modernas é bom aquilo que uma comunidade poderosa declara como sendo bom.
Atualmente uma obra não é reconhecida por ser boa, mas se torna boa a partir do reconhecimento. Assim como Midas, hoje em dia Netflix e Hollywood transformam em ouro tudo o que tocam.
Deixo de lado a crítica, já feita nas redes, do tema do folclorismo mexicano em que o filme cairia, por falta de cultura do diretor. Isto não é decisivo. O filme “À sombra do vulcão” (1984), de John Huston, baseado no livro de Malcolm Lowry, também apresenta um México estereotipado, mas é um filme notável. E este tema do folclorismo é muito relativo e controverso.
Nas histórias do cinema brasileiro, muitos historiadores apontam, por exemplo, para o exotismo de “Caiçara”, feito pela Veracruz em 1950, mas não criticam o exotismo de “Barravento”, de Glauber Rocha. (Pode-se consultar: Laurent Desbois, A odisseia do cinema brasileiro. Companhia das Letras, São Paulo, 2016, pág. 68). A acusação de folclorismo supõe uma “autenticidade” - talvez mítica - difícil de atingir.
De certa forma, os franceses, com “Emília Pérez”, fizeram com o México a mesma apropriação cultural canhestra que já fizeram com o Brasil em “Orfeu de carnaval” em 1960, um filme falado em português, com atores e música brasileiros, mas que ganhou o Oscar para a França pela nacionalidade de seu diretor, Marcel Camus.
Agora temos um filme falado em espanhol, referido ao México, com atores de origem hispânica (apenas uma mexicana), mas que é um filme francês pela nacionalidade de seu diretor. Uma espécie de pirataria artística de duvidosa legitimidade, mas cujo resultado pode ser uma absoluta obra-prima como “Orfeu de carnaval” ou um lixo como “Emília Pérez”.
Tudo isto, porém, poderia ser considerado anedótico, de maneira que vamos ao filme mesmo. A alma de um filme é seu roteiro. O argumento base do roteiro de “Emília Pérez” é o seguinte:
Um muito viril chefe de quadrinha de narcotráfico chamado Manitas tem o forte desejo de ser mulher, mesmo casado com uma bela esposa e pai carinhoso de dois filhos pequenos. Este nobre desejo de “se encontrar” para além do que a natureza lhe deu é minimizado, em parte, porque a transformação poderia ser vista também como uma manobra de um criminoso muito visado, para não ser encontrado e responder pelos seus crimes. Com ajuda de uma advogada quarentona em crise, consegue o auxílio de um médico que o opera e muda de sexo.
Esta manobra é mostrada com uma crueldade moral horrorosa, porque ambos fazem acreditar a mulher e os filhos que ele morreu, com toda a dor que isso provoca, além de legitimar o abandono da família para viver ufanamente “sua nova vida”, sem importar-se por destruir a vida dos que o amam. A advogada, que no início do filme aparece justamente escandalizada – forçada por acordos escusos de seu chefe – por ter que disfarçar de suicídio o assassinato de uma mulher por seu marido, logo depois se presta para o engano monstruoso de Manitas sem o menor escrúpulo.
Não se trata, claro, de fazer uma crítica moral do filme, o que estaria fora de lugar, mas de apontar o caráter intragável da história em si: alguém que diz amar sua família, sobretudo seus filhos, muda de sexo como muda de roupa pensando que, com isso, ganhará uma nova vida, e a maneira como o consegue é rebuscada e incoerente. Já o velho Aristóteles dizia que, em Arte, tem que haver alguma verossimilhança mesmo dentro do inverossímil.
Mas os absurdos éticos e estéticos do roteiro não param por aí. Embora agora seja mulher, Emília continua desejando mulheres. Além do mais, depois de um tempo ela começa a sentir terríveis saudades de seus filhos, aos quais ainda ama como seu pai biológico. Para matar a saudade, Emília convence a sua ex esposa Jessy a trazer seus filhos para a sua casa, se fazendo passar por uma tia, irmã do “falecido” que na verdade é ela mesma. Imagine um homem que mudou de sexo convivendo cinicamente com a sua ex-mulher que o crê morto, sem saber que aquela gigantesca tia é, na verdade, seu marido. (Jerry Lewis, em seus belos tempos, poderia ter feito este papel com grande sucesso).
O folhetim ainda tem mais desdobramentos “dramáticos”. A esposa aceita este retorno ao México (apesar de achar essa tia muito esquisita) porque mantém aí um amante, Gustavo, com quem ela queria mesmo se reencontrar. Mas a seguir os absurdos do roteiro se encaminham num viés pretensamente “social” e “político”, pois o nosso transformado chefe do narcotráfico, arrependido de seu passado de crime e culpado de múltiplos desaparecimentos, agora, em seu novo corpo feminino, cria uma Ong para pesquisar desaparecimentos e compensar suas vitimas! Sem perder a chance, claro, de dormir com Epifania, uma de suas clientes (e a única atriz mexicana do elenco).
Aqui o círculo se fecha moralisticamente: o criminoso arrependido tenta – com a cumplicidade da sua sempre fiel advogada corrupta – compensar, de alguma forma, os danos que fez quando ainda era homem. Durante um tempo, ela é feliz com seus filhos (apesar de provocar surpresa pelo carinho desmedido que mostra pelos seus “sobrinhos”), mas fica arrasada quando Jessy declara que vai se casar com seu amante Gustavo e levar seus filhos com ela, com o qual Emília entra em pânico e ira incontível. Já nessa altura do filme, resulta muito difícil empatizar com qualquer uma das protagonistas, dada a falsidade de suas opções e comportamentos, e a pesar do meritório esforço do trio de atrizes.
A última parte do filme, que começou intimista e continuou “social”, agora se torna uma espécie de thriller tenebroso e nauseante, no qual a transformada Emília, que aparentemente tinha abandonado seu passado de gângster, manda seus capangas darem uma surra em Gustavo para ele ir embora da cidade; mas Jessy não dá por menos e revida sequestrando Emília e arrancando-lhe alguns dedos. A esta altura, as minhas gargalhadas já começavam a incomodar aos meus vizinhos mais próximos do prédio.
Se o leitor já se perdeu nesta minha falida tentativa de resumir este folhetinesco turbilhão cheio de sem sentidos, assistir ao filme não lhe esclarecerá as ideias, porque o desenvolvimento em imagens é ainda mais confuso que qualquer tentativa de sinopse. Há um tiroteio final entre as gangues das duas mulheres, onde, finalmente, Emília conta para sua ex-mulher que ela é, na verdade, seu marido. Impossível não evocar aqui "Glen ou Glenda", o clássico de Ed Wood, considerado, até agora, o pior diretor de todos os tempos.
Como esta intragável história está narrada pelo diretor Audiard? Aqui chegamos ao paroxismo: está narrada em forma de filme musical! O ridículo chega ao seu máximo quando as três pobres atrizes são obrigadas a cantar ou sussurrar as suas falas de forma musical e dançar (ou mexer o corpo de maneiras grotescas, sem qualquer preparo artístico na maioria dos “números”). Não se entende como este estilo narrativo combina com o conteúdo, provocando surpresa quando não irritação, quando o espectador, mergulhado nos meandros da “história”, vê de repente que as atrizes e atores continuam suas falas cantando.
Poderemos odiar musicais, mas eles têm uma lógica, uma estrutura que mudou bastante com o tempo, desde “Cantando na chuva” até “Lá, lá, Land”, mas que aqui aparece como um aditamento postiço e arbitrário, além de maximizar os absurdos do roteiro.
O filme é, afinal, uma grande impostura – ética e estética – às custas de todos os temas que ousou abordar: narcotráfico, mudança de sexo, consciência social, conflito familiar, violência. "Emília Pérez" é uma ofensa ao México, aos transexuais - que aparecem afundados em crime e reivindicações hipócritas - e ao cinema, por apresentar uma mistura rarefeita de drama intimista, musical, crítica social e thriller, sem ser nenhuma dessas coisas.
Falemos agora do filme no contexto do Oscar. Historicamente, os brasileiros têm bastantes motivos para estarem irritados com o cinema francês. Além do fiasco de “Orfeu de carnaval”, poucos anos depois, em 1963, um insignificante filmezinho francês chamado “Os domingos da vila d’Avray”, de Serge Bourguignon, foi preferido pela Academia à uma das grandes obras-primas do cinema brasileiro, “O pagador de promessas”, de Anselmo Duarte, que já tinha ganhado a Palma de Ouro de Cannes nesse mesmo ano.
Os norte-americanos já deram aos franceses nada menos que 13 Oscar, dos quais os únicos realmente notáveis foram apenas 7, e desses, 4 foram feitos por diretores não franceses: “Meu tio”, de Jacques Tati (1958), “Orfeu de carnaval” de Marcel Camus (1960), “Z”, do grego Costa-Gavras (1970), “O discreto charme da burguesia” do espanhol Luis Buñuel (1973), “A noite americana”, de François Truffaut (1974), “As invasões bárbaras” do canadense Denys Arcand (2004) e “Amour”, do austríaco Michael Haneke (2013). O restante são apenas bons filmes, ou inclusive filmezinhos insignificantes, como os que ganharam Oscar em nada menos que 3 anos consecutivos! (77, 78 e 79).
Não pensem que Jacques Tati, Robert Bresson, Jean-Luc Godard, Alain Resnais, Louis Malle, Eric Rohmer e Claude Chabrol - nenhum dos quais ganhou nunca um Oscar competitivo - representam o cinema francês. Eles foram exceções dentro de uma mediocridade que tem sido típica do cinema francês ao longo de décadas, o que se mostrou mais claramente após o desaparecimento desses grandes mestres do passado. (Mesmo os mais cultuados diretores dos anos 40 e 50, como René Clair e Jean Renoir, fizeram obras irregulares e de qualidade questionável).
O cinema de Jacques Audiard é bem representativo dessa mediania do cinema francês pós-nouvelle vague, com obras apenas corretas como “De tanto bater meu coração parou” (2005), O profeta” (2009), “Ferrugem e osso” (2012) e “Dheepan: o refúgio” (2015). Entretanto, todos esses filmes anteriores de Audiard, mesmo sendo apenas corretos e sem qualquer genialidade, eram filmes dignos e sérios. Com eles, este diretor ganhou, predominantemente, prêmios franceses (incluindo uma Palma de Ouro por “Dheepan”), com exceção de dois Bafta e um prêmio em Veneza.
Mas com “Emília Pérez” ele se superou: da modéstia passou para o disparate. Este é o segundo filme de Audiard que ganhou a atenção dos norte-americanos. Em 2010, “O profeta” foi indicado, mas perdeu para o filme argentino “El secreto de sus ojos”. “Emília Pérez” foi uma das minhas piores experiências cinematográficas das últimas décadas, especialmente por ter de assistir duas vezes, tentando descobrir o enigma de seu incrível sucesso.
Eu espero ingenuamente que a Academia tenha um de seus raros momentos de lucidez e não premie este mamarracho ético e estético, mesmo que não dê o Oscar para o filme brasileiro, que tampouco merece (segundo já falei em nota anterior), mas que, sem qualquer dúvida, é um filme sério, como o são também “Vermiglio”, “A semente do fruto sagrado” e “Tudo o que imaginamos como luz”.
Mas se em março teremos “Emília Pérez” como melhor filme internacional, e talvez até como melhor filme do ano, depois de ser premiado em outros prestigiosos festivais, isso provará que a estupidez estética denunciada por Schopenhauer não ficou soterrada na primeira metade do século XIX.
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