ERRATA no livro A Ética e suas Negações

No início do capítulo I. Paternidade e Abstenção, a editora Rocco cometeu um terrível erro: eles simplesmente suprimiram uma linha que prejudica totalmente a compreensão da primeira frase. A frase completa é a seguinte:



Durante toda a história da Filosofia, a Ética tem sido Ética do ser, o imperativo moral básico foi sempre ‘Deve-se viver’, e tudo o resto, uma justificativa desse imperativo.



quinta-feira, 9 de junho de 2011

ACERCA DA NATUREZA E SITUAÇÃO ATUAL DAS ATIVIDADES FILOSÓFICAS NAS UNIVERSIDADES E A SIGNIFICAÇÃO DA FILOSOFIA NA VIDA DAS PESSOAS - EM PARTICULAR, DOS ESTUDANTES DE FILOSOFIA - NO BRASIL E NO MUNDO

Julio Cabrera

Abre-se neste lugar um espaço de discussão dentro dos seguintes marcos de referência temáticos:


  1. Natureza da atividade filosófica: é a filosofia uma atividade profissional como uma outra qualquer, ou a filosofia mantém com as nossas vidas um tipo de relação que não pode ser (totalmente) profissionalizada?
  2. Que tipo de filosofar se faz hoje nas universidades, e que tipo de filosofia era feita antes da etapa da profissionalização? Estudo de textos de filósofos clássicos brasileiros, na passagem do século XIX para o XX (de Tobias Barreto a Miguel Reale). O que se ganhou e o que foi perdido nessa passagem?
  3. A questão da relação entre nacionalidade e filosofar. Se a filosofia é universal e não está ligada a nações, porque não se estudam as filosofias de pensadores brasileiros nos cursos de filosofia? Não estão eles sendo excluídos por motivos puramente nacionais, e não estritamente filosóficos? Será que nenhum deles tem valor?
  4. Acerca da formação de filósofos no Brasil: análise das pós-graduações em filosofia, e do tipo de trabalhos filosóficos que são encorajados por elas, e os que são desencorajados. Estamos no melhor caminho na formação de pensadores? Podemos ficar otimistas com o atual desenvolvimento dos estudos filosóficos no Brasil?
  5. Trabalhos filosóficos de comentários (históricos ou sistemáticos) e trabalhos mais pessoais. É possível desenvolver filosofias próprias no atual contexto brasileiro? Pode um estudante de mestrado ou de doutorado ter expectativas (se assim o quiser!) de elaborar suas próprias teorias filosóficas? Ou está isso interditado, bloqueado ou prejudicado pela natureza e estilo das atividades filosóficas tal como elas são hoje concebidas?
  6. Por que não conhecemos filósofos mexicanos, argentinos, venezuelanos, africanos e indianos, e porque somos totalmente desconhecidos por eles? Por que não dialogamos com esses países? Por que, pelo contrário, conhecemos tudo acerca de todo tipo de pensadores alemães, franceses e norte-americanos? Quais são os atuais mecanismos de distribuição de informação filosófica? A "inexistência" de filosofias em países como Brasil ou México, não será conseqüência do particular funcionamento desses mecanismos?

As pessoas ficam convidadas para colocarem as suas idéias, escreverem artigos e fazerem propostas e sugestões sobre o tema debatido.


NÃO HÁ FILÓSOFOS NO BRASIL?

INTRODUÇÃO

Esta questão de filosofia no Brasil tem espelhos em outras partes do mundo. Quando eu morava na Argentina, falava-se da existência de filosofia na Argentina; os mexicanos falam da possibilidade de uma filosofia mexicana; e depois li que os africanos se perguntam pela filosofia na África, e fui vendo que meu problema era realmente um problema maior. Apreendi que o primeiro que diferencia a filosofia dos países hegemônicos da filosofia dos países periféricos é que estes se vêem na obrigação de se colocar esse tipo de problemas. Ser um membro de um país hegemônico X significa nunca ter que se perguntar algo como: “Existe filosofia em X?”.

Eu parto, pois, da questão de filosofia no Brasil, mas trata-se de um problema maior. Gosto de dividir a questão em três setores:

(a) O que significa “No Brasil”?
(b) O que significa “Filosofia”?
(c) O que significa “Não há”?

Então, vamos por partes.


(a) NO BRASIL

A tese universalista vigente torna desnecessariamente controverso que se fale de uma “filosofia brasileira”: já se sabe que a filosofia tem uma “vocação universal”, e não está atrelada a nações (isso é o que dizem). O primeiro que eu costumo responder a isto é: por que, então, a filosofia feita no Brasil não é estudada nos curricula das universidades ou apresentada em congressos de pós-graduações? Salvo que alguém sustente a extraordinária tese de que nada, absolutamente nada do que foi feito nos últimos dois séculos (pelo menos) por pensadores brasileiros tem qualquer valor, não começamos a suspeitar que esses autores são excluídos unicamente por serem brasileiros? E isso, não é a pura negação da tese universalista pelas avessas?

Mas não quero briga com a tese universalista. A professora Cecília Pires, da Unisinos, que tem dialogado comigo nestes anos sobre estas questões, teria mais motivações e subsídios que eu para entrar nessa briga. Eu prefiro aceitar a tese universalista por enquanto, e dizer que me interessa abrir, com minhas reflexões, um espaço para a filosofia feita no Brasil e desde o Brasil, sem precisar dizer que busco algo como uma “filosofia brasileira” (mas sem fechar as portas para ela).

Para mim o fato primordial da reflexão sobre filosofia no e desde o Brasil é a existência efetiva de estudantes de graduação que aparecem ano após ano nas minhas aulas querendo pensar suas próprias questões, muito ligadas com seu mundo em torno e usando seus próprios estilos reflexivos, em contato com autores mas sem vontade de simplesmente repeti-los ou comentá-los, mas, em todo caso, dialogar com eles a partir de interesses próprios que surgem da observação do mundo e não de um acervo interminável de leituras, referências e citações.

Mas esta demanda é apenas a metade do fato primordial. A outra metade é a interpretação cética e irônica (eu diria, niilista) da comunidade filosófica universitária sobre essa demanda dos estudantes. A resposta se tornou automática: esses alunos são imaturos e intuitivos, crentes de terem pensamentos próprios apenas por falta de informação, e que, se deixados à vontade, apenas repetirão o que já foi dito (o trauma da descoberta da pólvora); os professores devem orientá-los no sentido de uma formação reflexiva porém erudita e guiada pelos grandes pensadores, em geral dos países hegemônicos (Alemanha, França, Inglaterra, EEUU, Itália e adjacências, países escandinavos, Bélgica, Canadá, etc). Mais tarde, quando eles crescerem, vão rir de seu ímpeto juvenil e agradecer seus professores por tê-los encaminhado adequadamente: transformar-se-ão em sérios e competentes profissionais da filosofia, como Deus manda.

Quando falo da minha preocupação pela filosofia NO BRASIL não estou erguendo uma grande tese metafísica sobre o “ser nacional” brasileiro, nem ligando filosofia com peculiaridades nacionais. Contra o ceticismo, apenas estou lutando por abrir um espaço nas universidades para esses estudantes, em geral excelentes escritores, agudos, intuitivos, com um forte apelo pessoal a respeito das questões que tratam e com uma profunda frustração diante da perspectiva de serem apenas comentadores.

Eles nunca são muito numerosos, mas aparecem de vez em quando; e creio que, atualmente, eles não têm lugar nas instituições, eles são desencorajados e, freqüentemente, até ridicularizados (“Olha só! Pretende ser filósofo!”). Lutar pela filosofia NO BRASIL significa para mim algo tão inofensivo e tão universal quanto: há brasileiros querendo filosofar, simplesmente isso, filosofar como filosofam os alemães, os franceses, os ingleses, os italianos, etc. Por que não deixar que o façam, ou que o tentem pelo menos? Por que não arriscar?

Os brasileiros são também existentes inseguros e corroídos pela dúvida, seres-no-mundo como os alemães e os franceses. A tese de que os brasileiros (ou os argentinos ou os africanos) não teriam “cabeça filosófica” é uma tese metafísica que não poderia ser hoje formulada dentro dos quadros de qualquer filosofia contemporânea que se respeite a si mesma. Se a filosofia se entende “em bases existenciais” (para utilizar a expressão de Gerd Bornheim), como fora apresentada antes, filosofia é a voz da finitude angustiada e duvidante, do espanto, da curiosidade, da agonia, e isso não escolhe países ou regiões. O brasileiro está tão bem equipado quanto o europeu ou o asiático para filosofar, porque as coisas o tocam e o apelam de uma maneira inadiável. Isso é o crucial; não importa que as suas bibliotecas não estejam tão bem equipadas.

Não sustento que todo o problema da filosofia no Brasil se reduza a esta “demanda desatendida” dos estudantes “sem lugar” no atual sistema universitário; creio que se trata somente do fato primordial, mas que não exaure o fenômeno, apenas o faz deslanchar, lhe dá existência. Filosofia no Brasil significa, pura e simplesmente, brasileiros querendo filosofar com as suas próprias forças reflexivas, brasileiros que não querem passar suas vidas estudando as filosofias dos alemães, os franceses e os norte-americanos, mas que querem filosofar como eles. Não repetir o que eles dizem, mas fazer o que eles fazem.


(b) FILOSOFIA

Uma vez esclarecido o que significa “no Brasil”, passemos ao problema central: o que significa “filosofia”?

Como vocês já sabem, penso que filosofia é muitas coisas. Historicamente ela se desenvolveu em muitas direções e estilos. Creio que seriamos mais felizes (ou menos infelizes) se vivêssemos numa sociedade onde muitos tipos de filosofia pudessem ser praticados, e não um único tipo (com independência de assuntos e conteúdos, que também serão diversos). Uma sociedade onde nunca escutássemos a frase: “Ah, sim, mas isso não é filosofia” (uma frase que escuto demasiado freqüentemente, para meu gosto).

Em meu livro Margens das filosofias da linguagem (Editora da UnB, Brasília, 2003), na Parte IV, apresento uma concepção plural do filosofar. Não penso que seja uma boa concepção de filosofia aquela que nos obriga a dizer que Kierkegaard não é filósofo, ou que Carnap não é filósofo. Filosofia tem que ser algo que abrigue a ambos. Isso, ainda dentro da filosofia ocidental. Eu penso que deveríamos ter uma noção de filosofia que também abrangesse o que os chineses ou os indianos fazem. Mas isso, a gente deixa para um outro debate.

Se filosofar é colocado “em bases existenciais”, o ato de filosofar se vincula com o estranhamento diante do “natural” e “dado”, com a dúvida diante do estabelecido e aceito, com a negação, a problematização e o desconforto. O pensamento e a reflexão estão ligados com sensibilidades muito agudas, com certos pathé que aparecem em qualquer tema abordado, seja a definição de número, como em Frege, seja a relação com Deus, como em Kierkegaard. A experiência reflexiva se desdobra em muitas empreitadas de pensamento. Nesse sentido, a filosofia, numa sociedade livre, nunca deveria deixar de ser experimental e buscar incessantemente novos estilos filosóficos, aspecto da atividade filosófica totalmente bloqueado em nossas universidades.

No item FILOSOFIA NO BRASIL, eu coloquei uma coisa que despertou todo tipo de polêmicas e, creio eu, alguns mal-entendidos (como sempre). Eu falei do “ato singular de filosofar”, e me mantive cético acerca da ideologia das “condições sociais” que deveriam preencher-se antes de poder filosofar. No Diário de um filósofo no Brasil sou menos lacônico e explico isso melhor. Mas os leitores da página acharam que essa era uma noção “voluntarista” e “psicologista” da filosofia. Creio que o exemplo de Kierkegaard foi levado à risca, sendo que eu também menciono Marx e Husserl, e digo que o ato singular de filosofar poderia traduzir-se numa filosofia social ou numa filosofia da singularidade ou numa filosofia erudita. Mas parece que isso não foi levado a sério. Pareceu que eu sustentava que devíamos necessariamente filosofar como Kierkegaard, num sentido pessoal e “psicológico”.

Na verdade, em minha concepção, Kierkegaard, Marx e Husserl filosofaram todos da mesma maneira, ou seja, da forma como aqueles meus estudantes de graduação gostariam filosofar: fascinados por uma temática (social, epistemológica ou existencial), com muitas idéias sobre a mesma, e com uma consciência muito aguda da importância crucial das questões abordadas, além de uma espantosa facilidade para exprimir-se em suas línguas. Quando alguém é filósofo, suas questões são inadiáveis, as mais urgentes do mundo. Isto não é “psicologista”, nem “privado”, nem “pessoal” num sentido intransferível; mas é singular no sentido de provir de um contato do filósofo com as coisas mesmas, com fatos ou fenômenos que o golpeiam de uma maneira desafiadora e excludente. Sem isso, não há filósofo.

Também digo naquela seção que o pensador não está isolado de seu tempo e de seu ambiente de vida (e como poderia estar?), mas que essa inserção será feita desde o exterior, que o próprio filósofo não vai dizer algo como: “Eu sou dinamarquês, de maneira que vou responder a meu ambiente cultural de tal ou qual maneira...”. A inserção social e cultural do filósofo existe e o influencia, mas não é só isso o que leva o filósofo a filosofar. Sem aquele ato singular, a reflexão simplesmente não acontece.

Os professores de filosofia, de maneira quase automática, pensam que acentuar este ato singular de filosofar significa pretender filosofar a partir do nada, sem uma tradição filosófica, de maneira diletante e irresponsável, da maneira do “eu acho...”, etc. Mas a singularidade do ato de filosofar está sempre situada, e ela sempre acontece num ambiente cultural e social, e ambas coisas interagem. Afirmo, no entanto, que sem o ato singular, não há filosofia, e creio que os jovens filósofos do Brasil deveriam pensar muito bem nisto, antes de falar em “psicologismo” ou “voluntarismo”, repetindo uma visão dominante que foi incutida, e que já parece completamente natural.

Em março de 2007, recebi com muita alegria um e-mail de um estudante de filosofia da UFRGS me informando que meu texto da página (que antes se chamava “Filosofia sem filósofos?”) foi comentado por uma lista de discussão de alunos da pós-graduação, o que lhes ajudou bastante no esclarecimento de idéias sobre filosofia e ensino de filosofia, apesar de haver muitas discordâncias com minhas colocações. O estudante me dizia em seu e-mail que muitos jovens pensam que as coisas estão o melhor que podem estar no atual panorama da filosofia profissionalizada brasileira. Penso que o problema maior de todos é precisamente este: acreditar que tudo está bem. Quando acreditamos que tudo está bem, não temos qualquer consciência de que há algo de importante para fazer.

Ele escreve: “O ponto (a) é por certo o que tem incomodado a quase todos os que se manifestaram...”. O ponto (a) era, precisamente, o “ato singular de filosofar”. E alude ao “...comentário unanimemente negador dessa posição ‘psicologista’ do advento de um filósofo”. Certamente, concordo com ele de que eu nunca quis dizer que um filósofo faz sua filosofia com seus “problemas pessoais”, aqueles que o levariam para o divã de um psicólogo (apesar desse ser o caso particular de Kierkegaard e de outros). Acho isto um tremendo equívoco, e não consigo compreender como se pôde interpretar assim meu texto. Há uma profunda incompreensão do que significa aqui “singularidade”.

Vou colocar um caso bem diferente de Kierkegaard, para evitar a suspeita de “psicologismo” ou do “privado”, ou de “cacoetes” pessoais. O ato filosófico de Frege quando escreveu a Fundamentação da aritmética e a Begriffshrift foi profundamente singular, no sentido que me interessa resgatar. Por que? Porque nasceu de uma preocupação própria com uma série de problemas matemáticos e filosóficos, e não apenas do estudo erudito de um programa de pesquisa em andamento; ou, em todo caso, de uma apropriação peculiar de problemáticas que estavam apenas esboçadas. Aquilo se transformou para Frege numa questão obsessiva e excludente. Claro que a tese logicista não se vincula com problemas pessoais ou privados de Frege, mas com uma forte vontade de pesquisar essa questão e de levá-la adiante, com um engajamento pessoal e irrenunciável: seu ato filosófico foi singular sem ser nem privado nem pessoal num sentido psicológico.

Isto independe de qualquer previsão de resultados. Frege (como qualquer filósofo) não fazia idéia de aonde ia conduzi-lo essa investigação, nem se a mesma tinha realmente algum sentido. Pois filosofar é sempre um grande risco. De fato, ao longo de qualquer empreitada filosófica, surgem permanentemente dúvidas acerca do valor e sentido do que está sendo feito. De certa maneira, podemos dizer que uma parte importante da empreitada de Frege (o programa logicista) fracassou, e o que foi aproveitado foram, na verdade, trabalhos lógicos, semânticos e filosóficos que Frege fez em função daquele programa. Mas mesmo que a totalidade de um programa filosófico fracasse (Geulincx ou Nicolai Hartmann, de alguma forma, não fracassaram?), nada disso roubará nunca caráter filosófico ao que esses pensadores fizeram.

Aquilo que não pode perder-se mesmo quando os resultados não são os esperados, é o que chamo ato singular do filosofar. Nada tem a ver com psicologismo. Eu penso que este é um ponto extremamente importante que os mais jovens teriam que fazer um esforço para sentir e entender.

Eu creio que talvez dificulte o entendimento desta questão o fato da imagem do filósofo que recebemos na filosofia profissionalizada ser a de uma espécie de trabalhador ou funcionário (exatamente a idéia de filósofo que fora criticada por Nietzsche), de um indivíduo fleumático que se interessa por filosofia porque não conseguiu vaga na faculdade de odontologia. Ou seja, uma pessoa que não responde a um apelo irrenunciável, mas uma pessoa comum, como outra qualquer, que estuda filosofia como poderia estudar qualquer outra coisa. “Saber filosofia” é, para este honesto trabalhador filosófico, dispor de um vasto acervo de leituras e conhecimentos sobre uma determinada questão. Não se trata estritamente de pensar, mas de acompanhar pensamentos com competência. Uma de suas características é o extremo cuidado na elaboração de seus papers, no regime das citações, no esmero na tradução adequada, na exatidão e confiabilidade de suas informações; dificilmente encontraremos em seus trabalhos os erros, ambigüidades, imprecisões, obscuridades e ingenuidades que achamos tão freqüentemente nos textos dos filósofos.

Eu pessoalmente não gosto desta imagem do filósofo, mas em minha sociedade pluralista continuaria havendo um lugar para todos os que assumissem a filosofia desta maneira.


(c) NÃO HÁ

Passemos agora para o último tópico. A minha idéia principal é que frases como “Não existe filosofia no Brasil” ou “Não existe filosofia na África” não têm a mesma estrutura lógica que frases como “Não existem dois satélites da Terra” ou “Não existe tradução portuguesa completa das Investigações Lógicas de Husserl”. Aquelas “não existências” são constituídas; não são “fatos”.

Na minha recente conferência na Unisinos, e no Diário de um filósofo no Brasil, fiz uma lista expressiva de trabalhos filosóficos realizados na passagem do século XIX para o XX no e desde o Brasil. Mencionei os projetos filosóficos de Tobias Barreto, Arthur Orlando, Farias Brito, Graça Aranha, Renato Kehl, Vicente Licínio Cardoso, Jackson de Figueiredo, Pontes de Miranda, Artur Versiani Veloso, Djacir Menezes, Mário Ferreira dos Santos, Miguel Reale, Primo Nunes de Andrade, Roland Corbisier, Vicente Ferreira Da Silva e Vilém Flusser. Penso que se nenhum destes pensadores for considerado filósofo e nenhuma das suas obras for considerada valiosa, este é apenas um fato historiográfico guiado por seleções e critérios políticos. Não é uma questão ontológica.

A opinião oficial na comunidade é que todos ou uma grande parte desses trabalhos pré-profissionais ou não são filosoficamente relevantes (podem ter relevância em outras áreas, como o direito ou a educação) ou são autodidatas e diletantes, e alguns deles decididamente frouxos; pois a filosofia de qualidade começa somente na era profissional. Entretanto, naquela época, os pensadores mostravam pelo menos três características que parecem importantes para a atividade filosófica: um forte interesse em desenvolver pensamento próprio, um forte interesse em inserir-se em suas realidades vividas pensando as coisas mesmas, e um forte interesse em interagir mutuamente através da escrita (Silvio Romero escreveu sobre Tobias Barreto, Arthur Orlando sobre Romero e Tobias, Jackson de Figueiredo sobre Farias Brito, Djacir Menezes sobre Pontes de Miranda, Flusser sobre Vicente Ferreira, etc). Atualmente nos queixamos da falta de comunidades de discussão, e de que os colegas não se lêem mutuamente porque passam o tempo todo lendo autores de outros países, sem lembrar que na vilipendiada época pré-profissional existia já esse hábito, quase que totalmente perdido na filosofia atual.

A minha segunda idéia é que, no Brasil, de uma situação de filósofos sem filosofia passou-se para uma de filosofia sem filósofos. Eu acho que uma grande parte dos projetos de pensadores brasileiros do passado fracassou; mas eles eram filósofos, no sentido daquele ato singular de filosofar. Falando em Farias Brito, escreve Miguel Reale: “...a obra de Farias Brito parecerá uma experiência filosófica intensamente vivida, concluindo por admirar, talvez, mais ao filósofo do que a sua filosofia” (“Lei e Direito na concepção de Farias Brito”, em: Estudos de Filosofia Brasileira. Instituto de Filosofia Luso-brasileira, Lisboa, 1994, p. 184). Hoje em dia, a situação reverteu: a competência filosófica é imensa, temos muita filosofia em termos de comentários críticos, mas falta o ato singular de filosofar. Pois produção filosófica pode ser feita por bons comentadores, exegetas e tradutores; eles são talentosos e sempre fazem muita falta, mas só isso não será suficiente para constituir um espaço de criação de filosofia.

A minha terceira idéia é que a não existência de filósofos no Brasil, ao ser uma não-existência construída, não apresenta um problema a ser resolvido, mas uma conseqüência de um projeto institucional: a concepção vigente de como se deve produzir filosofia bloqueia o caminho para aqueles que pretendem instaurar qualquer ato singular de filosofar, pois o mesmo é abertamente desestimulado como sendo frouxo, irresponsável e ilusório. A não existência de filósofos não é um problema para o atual sistema porque ele se sustenta, entre outras coisas, sobre essa não existência; conta com ela. O surgimento de um único filósofo genuíno destruiria instantaneamente todo o sistema de produção acadêmica de filosofia. Ele não deve surgir. Um filósofo não é aguardado.

O caso Vilém Flusser é particularmente instrutivo neste ponto da reflexão. Se existe um pensador que instaurou o ato singular de filosofar, esse foi Vilém Flusser. Ele pensou as coisas mesmas, criou pensamentos próprios, criou conceitos próprios, criou estilos próprios, mas ninguém lhe prestou atenção, e até teve problemas para se sustentar e continuar trabalhando. Hoje em dia, quando a sua obra é internacionalmente reconhecida, ele é considerado (assim eu mesmo o ouvi numa reunião em Brasília) como “o único pensador brasileiro cuja obra é discutida no exterior”. Curioso que um pensador que fez toda sua obra na contramão de tudo o que naquela época se considerava filosofia no Brasil, agora seja considerado como representando a filosofia brasileira no exterior. Vilém Flusser não representa a filosofia brasileira, mas, pelo contrário, representa a filosofia que o Brasil continua negando-se a fazer.

Olhando para o passado (Farias Brito, Tobias Barreto, Vicente Ferreira Da Silva, etc) e para o presente (a filosofia acadêmica do comentário autorizado e competente), a grande pergunta para o futuro, que o jovem filósofo teria que se fazer é a seguinte. O QUE PREFERES SER: UM GRANDE COMENTADOR OU UM PEQUENO FILÓSOFO? Porque parece que ser um grande filósofo é a opção impossível. Só o caminho do grande especialista parece aberto. Mas por que não abrir um espaço, no ambiente acadêmico, para aqueles que prefeririam ser pequenos filósofos?

Um pequeno filósofo não é um filósofo medíocre. Um filósofo, grande ou pequeno, poderá fracassar, mas não será medíocre, pois o fracasso decorre de um esforço supremo e reivindicador que nunca pode acontecer no seio da mediocridade resignada. Farias Brito e tantos outros talvez fracassaram porque eles tentaram filosofar e não conseguiram. Hoje em dia, o risco de fracassar foi totalmente banido, não existe mais, porque já que se assume desde o início que não somos filósofos: parte-se de um fracasso metódico e garantido. O fracasso deixou de ser uma vicissitude da aventura de pensar. A competência do comentário autorizado é algo que pode ser adquirido mediante um treinamento padrão, e ninguém precisa mais do que se esforçar durante um certo período para adquiri-lo. O fracasso não está em seu horizonte, pois fracassar é um risco que só um autêntico filósofo pode correr. Sem risco de fracasso não há aventura do pensamento, não há filósofos. Se queremos que filósofos não existam, estamos no caminho certo.

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