Filosofia
Num primeiro momento, filosofar é, para mim, a maneira fundamental de instalação do homem no mundo, uma maneira insegura, temerosa, ignorante, insatisfeita, desejante, incompleta e sofredora. Vinculo filosofar com desamparo. Filosofar é o próprio clamor da finitude, seja qual for o âmbito ou nível onde ele se manifeste.
Estes desejos primários estão presentes em todas as pessoas, de maneira que, neste primeiro momento, e tal como sempre era dito antes da profissionalização da filosofia, todos somos filósofos pelo simples e terrível fato de sermos na peculiar maneira humana de ser, seres finitos, mortais, ameaçados, desamparados, ignorantes, perguntantes, jogados num mundo inóspito.
No meio do tumulto de suas preocupações cotidianas e de seus dramas pessoais, surgem de vez em quando em todas as pessoas, letradas ou analfabetas, inevitavelmente, as questões essenciais: o sentido, a morte, a dor. Essas questões são de imediato sepultadas pela maioria, ou deixadas de lado; por longos períodos, vive-se como se não existissem.
Num segundo pensamento, pelo contrário, quase ninguém é filósofo, nem mesmo a maioria dos professores de filosofia. Pois filósofos são aqueles seres perguntantes e faltosos que transformam a sua finitude ameaçada numa obsessiva busca pelo esclarecimento e numa poderosa forma de sensibilidade (e de sexualidade!) que manifesta total prioridade sobre qualquer outra preocupação; não porque o filósofo assim se o proponha, mas porque ele é lançado de maneira compulsiva para essa peculiar forma de existência.
É como se o filósofo, nesta segunda acepção, exacerbasse ou levasse ao paroxismo aquilo que é momento fugaz e dispensável na maioria das pessoas. O filósofo é aquele para quem aquelas questões ansiosas e incômodas são sua atmosfera permanente, o ar que respira, o centro de gravitação de seu modo de ser.
A obsessão pelo esclarecimento, a suscetível sensibilidade para tudo o que é finito, incompleto e inseguro, para a constante ameaça do mundo, para o desamparo sem consolo, trazem novos infortúnios para o filósofo, e não algo como uma “sabedoria de vida”. Pelo contrário, os humanos que simplesmente existem o drama de serem humanos sem refleti-lo, possuem forças, defesas e sabedorias que o filósofo perde no instante mesmo em que se põe a refletir.
Neste sentido, o genuíno filósofo não tem qualquer sabedoria para oferecer; pelo contrário, passará a vida tentando recuperar, mediante o pensamento, a sabedoria que acreditava ter quando não era filósofo (Wittgenstein: um exemplo tragicômico disto).
A filosofia profissional baniu o motivo existencial presente nestas duas concepções do filosofar. A atividade filosófica é agora uma tarefa institucionalizada mais do que um modo de existir. A filosofia profissional potencializou os meios de indagação de assuntos e, de certa forma, os levou a um grande aperfeiçoamento desde o ponto de vista de sua tecnicalidade instrumental. Também os transformou num poderoso mecanismo de dominação.
Mas a filosofia profissional não criou nada, simplesmente processou e interpretou a finitude de uma maneira particular. O desamparo fica como oculto ou camuflado embaixo das formas profissionalizadas do filosofar, tanto na filosofia analítica quanto, por exemplo, nos estudos dos "especialistas em Nietzsche".
A fragilidade intrínseca a todo filosofar (a todo viver) fica disfarçada numa maneira aparentemente firme, segura e técnica de "dominar os assuntos" e "construir argumentos". Mas nem mesmo ali o filosofar consegue esconder seu desamparo original.
A filosofia profissionalizada se perde nos encantos do comentário, a exegese, a citação, a autoridade e a erudição, onde a filosofia transforma-se num trabalho como outro qualquer, no qual podem empenhar-se todo tipo de pessoas, mesmo aquelas sem uma grande sensibilidade, obsessividade e envolvimento existencial nas questões formuladas.
A filosofia representa nas vidas da maioria de seus praticantes apenas mais uma inserção institucional, ao lado da família, o trabalho e o Estado. Trata-se de um tipo de produtividade como outro qualquer. A filosofia transforma-se num “setor do real” ao lado da odontologia, o direito e a jardinagem.
Para o filósofo nunca é primordial a aquisição de informações. Pelo contrário, de certa forma, filosofar é uma maneira de desinformar-se, de descartar informações, de virar-se com o que se tem, de fazer reflexões mínimas sem deixar-se atordoar pelo excesso de dados. Como filósofos não se trata de "saber mais", mas de "ser mais" através de uma indagação sobre o mundo.
Pelo contrário, vista da perspectiva profissional, um filosofar existencialmente norteado parecerá sempre “pouco sério”, irresponsável e diletante, na estrita medida em que ele mostra abertamente a sua fragilidade, seu caráter tateante e inseguro. (Do ponto de vista profissional, viver uma filosofia não é sério).
Nada impede que um filósofo seja professor de filosofia, como Kant, Hegel, Fichte, Heidegger e Wittgenstein o foram. Pois muitos pensam que ocupar uma cátedra na universidade é sinal de não ser um filósofo genuíno; que os filósofos genuínos são aqueles que nunca lecionaram em universidade, como Spinoza, Hume ou Schopenhauer. Na verdade, para o filósofo, é irrelevante ocupar ou não uma cátedra universitária. Ele poderá curvar-se diante da filosofia profissionalizada ou poderá tentar fazer a sua filosofia dentro dela.
Em minha concepção, a filosofia tem uma natureza múltipla. A partir dela surgem muitos tipos de textos, orais ou escritos, desde textos de árida análise lógica a textos fluidamente existenciais e autobiográficos. A filosofia, como eu a entendo, vai de Carnap a Kierkegaard com toda naturalidade. Nunca gastei meu tempo tentando mostrar que algum destes autores "não faz filosofia" ou que "não é filósofo".
Não assumo nenhuma atitude de escândalo diante da multiplicidade ou do "caos" do termo "filosofia", ou de impaciente exasperação diante de sua "falta de definição", pois vejo a multiplicidade do filosofar como um desdobramento de sua mais profunda natureza, e não como um penoso acidente histórico a ser lamentado e resolvido.
A filosofia, como a vida mesma, desenvolve-se num continuum vital de pensamentos, desde a máxima articulação lógico-analítica até o mergulho existencial no fluxo do vivido. Análise e existência são suas polaridades e as filosofias se desenvolvem numa gama rica e variada dentro desses extremos. Em todos os países houve flutuações desde um extremo ao outro, e sempre a tentação de marcar o lugar da "verdadeira filosofia" num ponto excluindo os outros.
Pessoalmente, fiz uma filosofia da lógica que tende ao articulado (ver Filosofia da Lógica), e uma filosofia da ética fluída e existencial (ver Ética Negativa). Não obstante isso, na dinâmica de minha obra, as duas coisas tendem para seus contrários: a minha ética tende para a argumentação lógica, e a minha lógica tem bases nietzscheanas. A existência tende à análise, a análise à existência. As duas polaridades da filosofia perpassam a totalidade de meu pensamento.
TEXTOS
Acerca da Vulgarização da Filosofia Através de “Introduções”.
Como fazer coisas-em-si com palavras
https://www.revistas.ufg.br/philosophos/article/view/10656
Por qué no agrado a los rebeldes
Ética e Violência da Criação Filosófica
Homossexualismo e Filosofia:
o Caso Wittgenstein
http://migre.me/v3ifI
HOMO VIATOR. Com saudades de Königsberg.
(Reflexões sobre professores que viajam)
https://drive.google.com/file/d/1ZQgC_TKfCz0CuXiNa9ooXwQ76pO9guDx
HOMO VIATOR. Com saudades de Königsberg.
(Reflexões sobre professores que viajam)
https://drive.google.com/file/d/1ZQgC_TKfCz0CuXiNa9ooXwQ76pO9guDx
O Mito da Crise: Suspeitas Acerca da Legitimidade do Conceito.
(A Noção de “Crise” e a Questão da “Morte da Filosofia”).
Mythos Editora: Entrevista a Julio Cabrera