ERRATA no livro A Ética e suas Negações

No início do capítulo I. Paternidade e Abstenção, a editora Rocco cometeu um terrível erro: eles simplesmente suprimiram uma linha que prejudica totalmente a compreensão da primeira frase. A frase completa é a seguinte:



Durante toda a história da Filosofia, a Ética tem sido Ética do ser, o imperativo moral básico foi sempre ‘Deve-se viver’, e tudo o resto, uma justificativa desse imperativo.



segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Resposta ao vídeo de Hilan Bensusan "Comunismos: los espectros amerindios" (2022)

Em julho passado, Hilan Bensusan, um dos mais importantes filósofos da inexistente Escola de Brasilia - talvez o mais existente de todos - coautor de nosso livro “A moral do começo” (2019), postou um vídeo sobre os que chamou “espectros ameríndios” (seque a baixo). Só agora consegui ver e tenho alguns comentários.
 


Ele quer retrotrair a dobradiça direita/esquerda (um tema que me preocupa muito, antes mesmo da publicação de meu artigo “A filosofia no fogo cruzado de direita e esquerda”, de 2021) ao encontro traumático (espectral, em seus termos) entre Europa e o Outro indígena ameríndio, que no século XVI começou a relativizar barbaramente (de maneira selvagem) seus valores até aí considerados “naturais”. De alguma forma, haveria algo como um “comunismo indígena”, uma igualdade e uma descentralidade alheias às sociedades europeias; e quando os europeus submetem os indígenas, fica pairando no ar o espectro desse Outro comunista represado, sempre assomando assustadoramente a sua cabeça no meio de nossa “civilização”, a palavra com que denominamos a nossa própria barbárie.

Mas isto já me leva a meu ponto. Nunca acreditei que tivesse existido alguma vez, não digo um paraíso indígena (como alguns frades jesuítas e dominicanos colocavam em alguns de seus relatórios), mas nem sequer alguma sociedade indígena que não se baseasse na disponibilidade, manipulação, dispensa, ou mesmo eliminação de outros membros do grupo ou de outros grupos. A catástrofe europeia em América não consistiu em que os colonizadores destruíssem algum pretenso paraíso indígena, mas em tentar colocar o inferno europeu no lugar do inferno indígena. Cada povo tem direito a seu próprio inferno. Se os europeus acharam infernal a sociedade indígena, haveria que os lembrar de que eles nem deveriam estar aí observando. Ninguém os chamou.

Mas me interessou a ideia do Hilan de que a dobradiça direita/esquerda poderia ter um referencial ameríndio, embora eu veja isso de maneira diferente. Direita e esquerda me parecem dois posicionamentos divergentes diante da situação indígena na invasão europeia (infamemente chamada “descoberta”). Nesse sentido, se vamos apelar à referência ameríndia, eu diria que a dobradiça direita/esquerda aparece pela primeira vez na pregação do padre Antônio de Montesinos em favor da humanidade dos indígenas e contra a sua escravização, pregação que provoca uma profunda emoção no jovem Bartolomé de Las Casas. Considero que Montesinos e Las Casas foram intelectuais de esquerda, sem qualquer metáfora forçada, e muito antes da famosa disposição das cadeiras na assembleia francesa do século XVIII.

Por que de esquerda? Para mim (tal como tento explicar em meu mencionado artigo de 2021), a esquerda se caracterizaria por desafiar as imoralidades fundantes da sociedade em que vivem, aquelas imoralidades nas quais se baseiam o sistema econômico sustentador da sociedade, e as específicas maneiras, leigas e religiosas, que os humanos dessas sociedades encontraram para enfrentar a terminalidade de seu ser, o sofrimento da finitude e a morte penosa, tudo isso que mantém a vida em movimento. A direita, pelo contrário, opta por não mexer com essas bases, por conservá-las e tirar-lhes todo seu proveito, tentando, como máximo, introduzir reformas, grandes ou pequenas, para que o mesmo esquema continue funcionando sem que as imoralidades fundantes se tornem demasiado intoleráveis. É essa atitude a que torna Ginés de Sepúlveda um intelectual de direita, já em pleno século XVI (um século que, em nossos colonizados departamentos de filosofia, se considera um período “improdutivo”, que “não deu grandes pensadores”, mas que foi crucial em nossa América).

Os colonos utilizaram uma expressão muito feliz quando se sentiram prejudicados pelos discursos de Montesinos. Quando foram se queixar aos funcionários do Rei, eles reclamaram que aquele padre e seus seguidores estavam pregando “ideia nova”. Claro. A ideia velha era que os indígenas eram para ser utilizados sem problemas no sustento da economia então vigente, e que o tratamento deles devia ser duro para obrigá-los a produzir o máximo possível. Montesinos, de repente, aparecia dizendo que os indígenas eram humanos e não meros animais de trabalho e que deviam ser tratados com consideração e respeito. Os colonos eram de direita, na medida em que queriam manter as coisas como estavam, enquanto os frades eram de esquerda (sem ser por isso comunistas, claro).

Isto pode hoje escandalizar às boas consciências e ser severamente denunciado quando visto no aparentemente superado contexto escravagista, mas isso não mudou na situação atual. A imoralidade fundante das nossas sociedades hoje não é mais a escravidão, que foi considerada pouco vantajosa pelos poderosos, mas o trabalho assalariado, excessivo, exclusivo e mal pago, da maioria das populações do mundo. Se algum pregador hoje proclamasse que os empresários têm que pagar salários muito mais altos, reduzir drasticamente as horas de trabalho e não humilhar seus funcionários, os empresários prejudicados por esse tipo de discurso socialista chamariam essa “ideia nova” de “subversiva”. Subversiva da ordem econômica, social e ontológica hoje estabelecida.

Então, me parece que em toda sociedade humana – incluindo as indígenas, fora de qualquer idealização de uma igualização, descentralização e bom comunismo que teria existido em suas comunidades – há um subgrupo, em geral muito numeroso, de humanos que podemos chamar “disponíveis-dispensáveis” (DD), que são aqueles que os poderosos (cada sociedade tem os seus) consideram que devem estar disponíveis de serem utilizados para que a sociedade funcione, e pudendo ser dispensados quando não servem mais para essa função. (O inferno do “trabalhador livre” moderno, não conhecido pelo escravo, consiste em ter de louvar a exploração quando comparada aos horrores do desemprego).

Também nas sociedades indígenas, através da predação e os sacrifícios, havia os DD, sejam os inimigos, os prisioneiros, os consagrados aos deuses, ou o que for; sempre tem algo de sacrificial em qualquer sociedade, europeia ou ameríndia, e em qualquer uma delas sempre existirão os que querem mantê-la funcionando como está (e estes serão os da direita) e os que querem transformá-la, mexer com o conjunto dos DD e fazer que passe a funcionar de outras formas (e estes serão da esquerda).

Passo, pois, meio batido pela “espectrologia” de Hilan. Não creio que apenas a Europa esteja aterrorizada pelo espectro de um pretenso comunismo indígena; uma grande porção de intelectuais latino-americanos, e especificamente brasileiros, também estão aterrorizados por esse mesmo espectro. Mas os espectros são muitos; há também o espectro do conservadorismo que pode levar ao fascismo, e que aterroriza a todos aqueles a quem o comunismo não aterroriza, ou aterroriza menos. Diga-me qual espectro te assusta e te direi quem és. 

Julio Cabrera, 
10 de outubro de 2022

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